A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre o diferencial de alíquotas (Difal) do ICMS surpreendeu o varejo on-line e trará impacto bilionário. As empresas não esperavam uma derrota no julgamento, que veio em novembro depois de o caso sair do Plenário Virtual – onde venciam – para o físico. Só Mercado Livre, Magalu e Lojas Renner têm, juntas, pouco mais de R$ 1,2 bilhão em depósitos judiciais referentes à disputa.
Os ministros entenderam que a cobrança do Difal do ICMS só poderia ser retomada em abril de 2022, e não em 2023, como defendem os contribuintes (ADI 7066). O diferencial de alíquotas é usado para dividir a arrecadação do comércio eletrônico entre o Estado de origem da empresa e o do consumidor.
Essa discussão surgiu depois de o STF, em um primeiro julgamento, considerar a cobrança inconstitucional. Os ministros definiram que os Estados e o Distrito Federal ficariam impedidos de cobrar o imposto a partir de 2022 se, até essa data, não fosse editada uma lei complementar (LC). Essa norma – LC nº 190, de 2022 – foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2021, mas sancionada apenas no mês de janeiro de 2022.
Com isso, surgiu a discussão sobre a possibilidade de a cobrança ser feita naquele ano ou somente em 2023. O impacto total da discussão, estimado inicialmente pelos Estados e Distrito Federal, era de quase R$ 10 bilhões. O valor é referente à perda de arrecadação de todo o ano de 2022.
Os montantes referentes a Mercado Livre, Magalu e Lojas Renner constam de relatório do Citi, que acompanha com lupa tais empresas entre outras do setor. A instituição financeira concluiu que, antes do julgamento, a leitura era de chance de perda remota. Mas, agora, passa a ser de perda provável, o que obriga o contribuinte a fazer provisionamento, se ainda não o fez. Casas Bahia, por exemplo, não teria pago o Difal do ICMS em 2022 e deveria fazer provisão, segundo o Citi.
Em relação às empresas que já têm depósitos judiciais, contudo, não haverá efeito sobre o caixa (lucro), aponta o Citi, mesmo com uma derrota definitiva no STF. Isso porque elas já não contavam com o montante na operação.
Apenas poderia ser recuperada pelas companhias a quantia referente ao diferencial de alíquotas de janeiro, fevereiro e março de 2022. Nos formulários de referência das companhias abertas, no entanto, não há esse detalhamento.
Como ainda cabe recurso, o varejo não perdeu a esperança. Continua a defender que o Difal do ICMS só poderia começar a ser cobrado em janeiro de 2023. Se houver uma reviravolta – algo raro por meio de embargos de declaração -, os valores depositados em juízo, referentes a 2022, poderão ser sacados pelas varejistas, com incidência de juros.
Para o tributarista Leonardo de Andrade, do escritório Andrade Maia, é preciso aguardar a publicação do acórdão do STF e o julgamento de eventuais embargos. Na banca, diz ele, há mais de dez mil processos sobre o tema.
“Cerca de 250 empresas nossas clientes discutem um total de cerca de R$ 1 bilhão de Difal de 2022 e a maior parte não provisionou”, afirma Andrade. “Trataram como perda possível e, pelas regras contábeis, só se a perda é considerada provável se provisiona”, acrescenta o advogado.
Especialistas defendem que há contradições entre os ministros, por isso, seria possível uma reviravolta. “O ministro Luiz Fux, por exemplo, ao votar fala da premissa da segurança jurídica, enquanto o ministro Luís Roberto Barroso aborda o artigo 3º da LC 190 [que estabelece que a norma entra em vigor na data de sua publicação]”, afirma Andrade. “Como os entendimentos não andam na mesma linha, possibilitariam uma revisão.”
A LC 190, de janeiro de 2022, alterou a Lei Kandir, conhecida como “Lei do ICMS”, para dispor sobre o Difal e permitir a retomada da cobrança. A dúvida é quando ela entrou em vigor. As varejistas defendem a aplicação do princípio da anterioridade anual – ou seja, só valeria a partir de 2023. Os ministros do STF, porém, aplicaram apenas a noventena (90 dias).
Se a decisão do STF for mantida, em embargos de declaração, o impacto será devastador para quem não recolheu nem tinha depósito ou provisão do Difal de 2022, de acordo com Andrade. “Como o varejo estava em crise pós-pandemia, por questão de concorrência, a maior parte dos nossos clientes não colocou o Difal no preço dos produtos”, explica. “Assim, essa conta vai chegar direto no resultado dessas companhias, com potencial pressão de futuro aumento de preços para os consumidores.”
Outros advogados ponderam que a maioria das empresas com faturamento acima de R$ 100 milhões foi conservadora e já provisionou ou fez o depósito em juízo dos valores referentes ao Difal. “Para elas, o impacto vai ser pouco ou mínimo, porque a forma de reconhecimento contábil da despesa continua igual”, diz a tributarista Mariana Kubota, do escritório de advocacia Stocche Forbes.
Ao invés de recolher a diferença para os cofres públicos, afirma, elas estavam efetuando os depósitos. Na prática, nesses casos, os Estados é que farão a retirada dos valores depositados para incluir nos orçamentos.
A consequência será mais severa para as varejistas que nem provisionaram nem depositaram em juízo. “Algumas empresas foram superagressivas e terão de reconhecer os tributos a mais no resultado, com juros e, em alguns casos, multa”, diz Mariana.
Porém, para essas empresas, a situação jurídica já está descoberta, afirma Igor Mauler Santiago, sócio do Mauler Advogados e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT). “Elas já estão expostas a uma autuação. Agora, está claro o quanto que vão perder”, diz. Santiago adiciona que grande parte das liminares proferidas em 2022 para as empresas não pagarem o Difal foi cassada.
Outra questão, segundo o tributarista, é que os contribuintes que fizeram o depósito judicial não poderão abater os respectivos valores no Imposto de Renda (IR). “O depósito ganha um efeito perverso, porque tem o desembolso, mas não tem a dedutibilidade no IR”, afirma.
Uma alternativa para algumas empresas será a discussão de uma nova tese sobre o Difal do ICMS, apontam tributaristas. “Já há clientes com ação na Justiça pela impossibilidade de cobrança do Difal antes que seja criado um portal nacional a respeito, o que os Estados admitem que ainda não existe”, diz Leonardo de Andrade.
Isso porque o artigo 24-A da LC 190 estabelece que “os Estados e o Distrito Federal divulgarão, em portal próprio, as informações necessárias ao cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, nas operações e prestações interestaduais, conforme o tipo”. A nova tese, contudo, ainda não chegou aos tribunais superiores.
Por meio de nota, o Mercado Livre diz acompanhar a eventual publicação do acórdão do STF, que pode trazer um impacto significativo para o setor de varejo expandido, “considerando que vai contra a garantia constitucional da anterioridade”.
Também por nota, a Lojas Renner afirma que “não temos provisionamento contábil constituído para o período de 2022”. Em um primeiro momento, a empresa entendeu que o impacto líquido de impostos no resultado seria na ordem de R$ 60 milhões, algo inferior a 5% do lucro líquido considerando a base de 2022, “porém estamos avaliando com nossos advogados quais são as alternativas”. Diz, porém, que fez depósito em juízo dos valores relativos a esse período, então não há efeito negativo no caixa.
Para a Magalu, o impacto financeiro é marginal, justamente porque já tem o valor em discussão em depósito judicial, o que garante que o caixa não será afetado. Mas considera também que ainda cabem algumas definições sobre o assunto.
Procurada, a Casas Bahia informou que não iria se manifestar.
Fonte: Valor Econômico
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